O escritor

A pior parte era quando faltavam palavras.

Já estava tudo pronto: a ideia central, o começo, o meio, a frase de impacto do final, os nomes e até alguns diálogos. Mas não havia coisa pior para Júlio quando faltavam palavras para colocar no papel tudo aquilo que já tinha criado na cabeça.

Quando pequeno gostava dos desenhos. Passou a rabiscar os próprios quadrinhos quando ganhou do pai um estojo de lápis de cor. Era habilidoso, sem dúvida. Não na parte gráfica. Facilmente uma pessoa poderia ser confundida com uma casa, assim como uma ovelha chegou a ser entendida como navio por sua mãe, dona Elisa, sua maior fã. O que chamava a atenção de todos era a facilidade de Júlio de criar histórias.

– Que imaginação impressionante! – ouvia.

Na escola, destacavam-se as redações e as altas notas em Português.

– Em Biologia seu filho é um desastre, dona Elisa, e em exatas então… É dar dó – disse a professora, certa vez. – Mas seus textos compensam.

Júlio não era muito chegado em esportes (costumava ser o último a ser chamado na montagem das equipes de Educação Física e não era raro os times serem fechados antes mesmo de Júlio dar-se conta que não fazia parte de lado algum), logo não costumava ser o centro das atenções na ala masculina.

Seu protótipo ajudava: gorducho, atrapalhado, pouco cabelo. Foi o primeiro da turma a ter barba e o último a querer livrar-se dela. Atraía pessoas semelhantes. Sua primeira namorada chegou a ser cumprimentada por seu pai com um forte tapa nas costas e um aperto de mão.

Ingressou na faculdade de Jornalismo. Participava de concursos de redação e raramente ficava fora do pódio principal. Sua escrita chamou a atenção de pessoas ligadas ao Expressa Geral, o jornal da universidade, onde assumiu o posto de colunista sem esforço.

– Você é um talento raro, Júlio! Você escreve muito bem, é invejável – dizia seu chefe. – E suas histórias são muito legais, muito gostosas de serem lidas. Tenho certeza que você conseguirá lidar com este cargo com um pé nas costas.

Como todo jornal de universidade, o Expressa Geral não era lido por ninguém. Por isso, ficou espantado quando foi obrigado a interromper sua busca mental por palavras enquanto escrevia, sozinho, em uma mesinha de cimento de seu centro acadêmico.

– Você é o Júlio, né? – ouviu. Largou a caneta e olhou para cima. – Do jornal…?

– Sim – respondeu, confuso e um pouco assustado. Chegou a abrir a boca alguns centímetros. Estava surpreso por ser reconhecido por alguém. Principalmente por aquele alguém.

Ela apresentou-se como Laís. Como se precisasse. Todo mundo conhecia a Laís.

Alta, magra, loira. Seus cabelos cor de mel desciam pela cabeça, planavam no ar e aterrissavam nos ombros com a leveza de uma pena. Seus doces olhos verdes gritavam, como se exigissem atenção, e sua boca rasgava sorrisos brilhantes tal qual cometas que riscam a noite.

– Você está ocupado? – perguntou.

– Não – disse após um pigarro. – Pode falar – Júlio não conseguia desgrudar de seus olhos de esmeralda.

– Há tempos que tenho ouvido falar de você…

– Duvido muito – respondeu, simpático, após a pausa da garota para arrumar o cabelo e puxar uma cadeira para sentar-se. Ela tinha cheiro de fruta.

– Não seja modesto – respondeu. – Todos nós já lemos algum de seus textos. São ótimos.

– Muito obrigado.

– Aliás, o seu último na edição da semana passada foi excelente. Surpreendente! Eu não esperava por aquele final. Que virada!

– Muito obrigado novamente. Eu tento fazer o meu melhor.

– E faz, não há dúvidas – respondeu com sorriso largo, pousando sua mão delicada sobre a calejada de Júlio.

Ele observou a cena durante silenciosos segundos. Seus olhos se encontraram novamente. Laís prosseguiu:

– Sabe, Júlio… Não sei se você soube o que houve com o professor Laerte…

– Não. Quem é esse?

– Professor de Literatura. Lecionava nos cursos de Letras, alguns em Comunicação. Era um gênio das palavras, um grande poeta.

– Era?

– Sim. Ele faleceu há quinze dias, foi uma grande perda. Era muito querido.

– Eu soube de um professor que morreu… Latrocínio, né?

– Uma tragédia…

– Sinto muito – respondeu, complacente com o rosto murcho da garota. Era perfeita mesmo triste. – Mas o que é que tem? – prosseguiu.

– Ele era membro do grupo de teatro da faculdade, o qual eu também faço parte. Era nosso roteirista. Escrevia as peças junto com o professor Horácio, que dirige os espetáculos.

– Uhum…

– Com o falecimento do Laerte, o Horácio não está dando conta do recado sozinho. Está muito deprimido e se afundando na bebida. Dizem que ele é alcoólatra em fase de recuperação mas teve essa recaída, coitado.

– Nossa…

– Eu vim procurá-lo para saber se você tem o interesse de trabalhar conosco como roteirista. O que você acha? Vim em nome de todo o grupo e com o consentimento sóbrio do próprio professor Horácio. O que é raro hoje em dia.

– Eu… Ah… – Júlio não esperava por aquilo. Laís apertou sua mão e vidrou-o com seu olhar de sereia. Acabou aceitando.

Conheceu a equipe no dia seguinte, conforme havia combinado.

– Seja bem-vindo, Júlio – disse o magro professor Horácio, com o rosto chupado, olheiras fundas, barba mal-feita e um singelo bafo de uísque. – Temos muito a conversar.

O professor era simpático, porém ausente. Suas enormes recaídas o afastavam com frequência do grupo que, aos poucos, era dominado por Laís.

Em uma das poucas conversas frugais que Júlio e Horácio tiveram, o professor dera carta branca ao novato. A história que quisesse, do jeito que quisesse, da maneira que ele achasse melhor. Júlio desconfiou que essa liberdade inesperada se dava mais a falta de ritmo de Horácio para com seus compromissos do que ao seu próprio prestígio. Mas não se importou. Sua história ficou pronta em menos de uma semana, tamanha empolgação.

Durante esse período e, principalmente com as ausências de Laerte, Júlio começou a frequentar os ensaios e a conhecer mais sobre a área. Passou a contribuir com a produção, a equipe cenográfica e até chegou a fazer amizade com o técnico de som, chegando a substituí-lo certa vez. Entretanto, dentre todas as coisas novas que aprendeu, uma foi a mais surpreendente: Laís era uma tremenda vaca.

Megera. Venenosa. Ruim.

Ela era capaz de destruir um ambiente amigável em questão de segundos.

– Rogério, isso está uma merda! Meeeeerdaaaaa – gritava, chiliquenta.

Com a ausência de Horácio, Laís intitulou-se diretora por fazer parte do grupo há mais tempo, achar-se melhor atriz e mais bonita que o restante.

– Luíza, eu serei a protagonista – disse após uma discussão. – Você é do avesso – segurava o script com a ponta dos dedos, como se estivesse com nojo. – Precisa nascer mais três vezes para ser, no mínimo, razoável. Eu serei a protagonista e ponto final.

O ódio passou a tomar conta de Júlio quando Laís começou a intrometer-se em seus textos.

– Júlio, isso aqui não faz o menor sentido…

– Lógico que faz, Laís.

– Como? Ele morre do nada?

– Como do nada? Ele foi envenenado. Você leu o script inteiro?

– Não, só o que importa. Minhas falas.

Era uma menina mimada e detestável.

– Júlio, você não sabe escrever! Isso é uma grande porcaria!

Ele não sabia o motivo por tamanho desprezo. Ela era a protagonista e aquela era, sem dúvida, uma ótima história.

– Ela faz isso quando não tem o que argumentar, não ligue – disse Luíza que, de fato, era horrorosa. Precisava melhorar muito para ser feia. Porém era muito mais talentosa que Laís.

O descontrole total surgiu no dia do espetáculo.

O anfiteatro estava lotado. A peça foi tratada pela universidade como um evento imperdível e as pessoas disputavam a tapa um ingresso daquela que muitos já consideravam uma noite memorável.

– Júlio, preciso falar com você. Venha cá – disse Laís, no camarim, maquiando-se.

– O que é?

– Tome – bateu um pedaço de papel em seu peito. Júlio o apanhou. Era uma lista. – Preciso disso.

– E o que é isso?

– Coisas que eu preciso. Vou sair depois da apresentação e ainda não tenho esses itens.

Gloss?

– Quero que vá agora – respondeu, como se Júlio não tivesse dito nada anteriormente.

– Agora?! Como assim?

– É surdo? – passava a última, e desnecessária, camada de pó nas bochechas.

– A peça vai começar agora! A peça que eu escrevi!

– Você já sabe o que vai acontecer, não precisa ficar – disse, rindo. – afinal, foi você mesmo quem a escreveu. E é melhor que você vá antes que eu risque seu nome dos créditos. Você sabe que os alunos do corpo de teatro têm bolsa de estudos na faculdade e, do modo como você se veste, acho que precisa dela. E muito. E tome isso também – bateu-lhe no peito uma calculadora enorme. – Para calcular o troco. Uma pena que seja tão ignorante em Matemática. Devia parar de ler Dostoievski e se preocupar de vez em quando com aritmética.

Por quê? Por quê? Quem era aquela megera para falar aquelas coisas? Ela não sabia nada da vida de Júlio! Nada! Não passava de uma aproveitadora dissimulada, uma egoísta sem escrúpulo, uma nojenta!

Júlio saiu do camarim e passou a andar atordoado pelos corredores da universidade. Suava. Enxugava a testa com as mangas. Seus olhos lacrimejavam. O estômago ardia de nervoso. De raiva. Ele não merecia isso. Ele era um bom rapaz! Batalhador, talentoso. Não podia deixar-se abalar por uma mesquinha como aquela, e não daquele jeito.

– Eu não vou é porra nenhuma! – disse, batendo as mãos em um pilar.

Decidido, voltou. Abriu as portas do teatro. A peça já havia começado. Estava no início do primeiro ato.

Foi então que seu mundo caiu de vez.

– Que merda é essa…? – perguntou para si mesmo, em voz alta, enquanto ela morria ao vento.

Aquela não era sua peça. Não era sua história!

– Não é possível…

Zonzo, apalpava as paredes para locomover-se. Não estava creditando no que seus ouvidos escutavam.

Laís mudou suas falas. Dizia coisas desconexas, de poetizas em formação que insistem em transformar coisas fáceis em difíceis, fazendo com que Rogério, seu colega de cena, não passasse de um objeto tão nulo quanto os tacos do tablado do próprio palco.

Não. Aquilo não.

Na lateral, em pé, bufou. Apertou com força a calculadora até seus dedos doerem. Começou a tremer.

Num instinto que não soube explicar posteriormente de onde veio, Júlio arremessou a calculadora no palco com toda sua força. Viu-a voar como um pomo sem asa, dardejando sedento por seu alvo. A calculadora rodopiou e atingiu a cabeça com a força de uma marreta que destrói o muro. Mas a cabeça errada.

O objeto espatifou-se, e o chapéu de Rogério parou bem longe de sua cabeça desmaiada. Caiu que nem pedra.

Júlio gelou. Parado, sentiu os corpos virarem em sua direção, fuzilando-o com o olhar. O silêncio só permitia ouvir os gemidos de Rogério, estatelado no chão.

Não pestanejou quando os seguranças agarraram seu corpo e o levaram para fora do anfiteatro. Também não ligou para as acusações da plateia e para a indignação dos convidados. Mesmo assim bradava a plenos pulmões e gesticulava os braços:

– Desgraçada! Louca! Louca! Sua desgraçada!

Não se arrependeu do que fez. Apenas de não ter acertado o alvo que desejava. Mas não deixou de se lamentar depois, enquanto tomava uns sopapos dos seguranças. Até com uma calculadora na mão era incapaz de fazer uma porra de cálculo direito.

 

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